domingo, julho 17, 2005

Só não vê quem não quer

Photo by Eliane


Só não vê quem não quer
Fabrício Carpinejar
Não percebemos o que não falamos quando falamos. Um menino cego no trem estava acompanhado da mãe. Vestido como um escoteiro. Um lenço branco no bolso, com certeza, havia sido pivô de caprichos domésticos e embrulho de presente. A mãe dizia com insistência: "viu, o trem fechou, viu, o trem abriu, viu". Ele era obrigado a ver acenando a cabeça. Um outro cego caminhava pelo centro, alguém veio ajudá-lo a atravessar a rua, endireitou seus ombros para a calçada e orientou em tom de profecia: "segue reto toda a vida". Eu imagino o cego seguindo reto até hoje, caminhando dias e dias para não contrariar o conselho. Menos da metade da linguagem serve para entender, o resto é para sugerir e confundir. Não se sai pela porta da frente do idioma, sempre pelas janelas e pela porta de fundos. Fugimos na carona do primeiro duplo sentido que aparece. É uma maneira de enxergar o que falta acontecer. Assim como meus olhos são mais olhos quando nada possuem. Assim como as gavetas também ficam de luto. Assim como as amoras, quando tristes, são bem melhores. Assim como o ninho é um armário horizontal. Assim como o fogo é o esqueleto da espuma. A solidão me tornou indiscreto. Eu procuro um rosto macio, envelhecido de videiras, que me faça dormir uma vida. O homem se reduz para poder dormir. Ao se encolher, deixa espaço para a mulher que já existe em sua respiração.