terça-feira, maio 22, 2007

Presente de outono


EU ESPERO A CHUVA NO ALTAR
Fabrício Carpinejar
Não precisa ser poeta para fazer poesia. A poesia não pergunta sua ocupação, ela pousa. Estava na casa do meu cunhado, Gérson, quando o vejo xingar seus filhos Natasha e Lucas, que não paravam a mútua provocação. Aguardava um corretivo fúnebre, uma imprecação de trânsito, um palavrão gordo e ruidoso. Mas que nada, que elegância para desaforar. Não ardia a ofensa. Não foi aquele pp, fm, m. Foi como uma música de Dorival Caymmi, mais plágio do mar do que coisa do homem. Ele disparou: Vai dormir pra chover. Ouviram isso? Vai dormir pra chover. Essa é a reprimenda, a terrível reprimenda que saiu de sua voz. Eu ouvi e pedi para também ser insultado. Troque um desaforo por um poema. A boca não ficará mais perfumada, mas a terra sim. Uma combinação mágica: quem não deseja dormir com chuva? Chuva e telhado, chuva e paz, chuva e meio-fio, chuva e janela, chuva e lençol limpo. Afinal, quantas madrugadas eu fui descansar esperando que a água lá fora alisasse minha testa e sufocasse a sirene do despertador com suas elegias de limo? Dormir pra chover. Dormir para ver se a chuva chega logo. Aguardar a chuva no altar. Casar-se com a chuva e seu toldo de neblina. Eu quero dormir pra chover, como Manuel Bandeira gritava pela Estrela da Manhã. Deixar que um lago se acumule nos vasos, que os chapéus fiquem murchos, que as plantas se estiquem em exercícios aeróbicos. Dormir pra chover. Assim como meus filhos falam boa-noite quando vou cochilar de tarde no final de semana. Nem estão aí para o horário, estão preocupados em ser fiel com o escuro que toma o quarto e a respiração dos pais. Dormir e pescar meus pecados, dormir e se arrepender. A chuva é quando me confesso. Nunca poderei me salvar num dia de sol, numa manhã esquartejada de azul. Como pedir desculpa com a luz me empurrando para a rua? A redenção surge com a chuva, os relâmpagos montando pandorgas nos morros. A chuva me transporta para a casa, para as gavetas, para o abajur. Aos lugares mansos e pantanosos de mim. A chuva e lá vão os olhos a nadar ida e volta. Ida e volta. Ida.